domingo, 20 de junho de 2010

O lado certo do errado
Por Fernanda Machado


Miguel de Cervantes Saavedra foi um dramaturgo, poeta e romancista espanhol que, com seus 20 anos, escreveu seus primeiros sonetos e teve a vida muito conturbada. Mudou diversas vezes de cidade, alistou-se no exército, participou de muitas batalhas até que perdeu sua mão esquerda e passou a ocupar cargos mais administrativos. Ao publicar seu primeiro romance, “Galatea” - narrativa em prosa e verso - foi preso com a acusação de desvio de verbas e presume-se que foi dentro da cadeia que ele deu início à sua maior obra considerada hoje parte fundamental da literatura universal: “Dom Quixote de la Mancha”. 
Nos anos seguintes, Cervantes criou apenas algumas comédias teatrais até que escreveu outra obra-prima: as “Novelas Exemplares”, que atualmente é caracterizada como um dos livros de contos essenciais à literatura. O escritor denominou a própria obra como “exemplares”, pois em todos os contos do livro têm mensagens morais, com descrições da realidade espanhola exemplificada e com relatos de situações de perigo e aventura, mas sempre com um “final feliz”. Em seu prólogo, Cervantes afirma que seu único objetivo com a obra era proporcionar a todos divertimento sem qualquer mal, e que se de alguma forma ele induzisse qualquer leitor a ter pensamentos negativos, preferia cortar suas próprias mãos do que publicar uma obra dessa índole.
Todas as novelas da obra se passam na Espanha, porém a que mostra um lado não tão aceitável das cidades, é a novela “Rinconete e Cortadilho”. A estória conta de dois jovens, Pedro del Rincón e  Diego Cortado. Ao se conhecerem vão para Sevilha. Ao arranjarem trabalho na nova cidade, Cortado pensou ter ganhado como pagamento uma bolsa antiga com dinheiro dentro, mas logo depois descobriu que seu último cliente havia lhe dado por engano, pois ele afirmou ter perdido e perguntou a Cortado se ele achou. Cortado disse que não, mas consolou-o dizendo que não demoraria a encontrá-la. 
Em seguida, um homem se aproximou dos dois amigos e os informou que ninguém rouba nada sem que o Senhor Monipódio fique ciente. Dessa forma, os jovens foram apresentados a  ele e esclareceu-se que naquela cidade havia um grupo organizado de furtos, mas que roubavam apenas dos mais afortunados e concretizavam vinganças encomendadas, e que uma parte de seus lucros era reservado para doação e manutenção da Igreja ou de imagens espalhadas pela cidade.  Assim, os dois foram convidados por Monipódio a juntarem-se ao bando e sem exitar, aceitaram o convite. Em apenas uma noite com Monipódio e seus capangas, Cortado e Rincón mudaram seus nomes para Rinconete e Cortadilho e vivenciaram experiências nunca imaginadas. Descobriram aos poucos os verdadeiros valores e princípios daqueles homens que roubavam, mas que por fazer caridades à Igreja acreditavam com veemência que ainda tinham seus lugares reservados no Céu. 
Mesmo a novela tendo um desfecho sem muitas emoções e surpresas, deixando uma sensação de que talvez poderia ter tido outro final, ela mostra que as primeiras impressões podem, sem dúvida, serem erradas. Não é porque um homem que furta, não tenha um bom coração e defenda com todas as suas forças seus parceiros. Por mais que haja coisas que não acredito serem corretas, como vingar alguém em troca de dinheiro já que ninguém tem o direito de tirar a vida de outro, há algumas passagens na estória que passei a olhar de outra forma. Como, por exemplo, quando uma das moças da casa do Senhor Monipódio chega aos prantos dizendo que foi maltratada por um de seus homens e os outros decretam fazer justiça no mesmo momento. Mas após uma conversa com outra moça, a primeira percebe que aquele homem só a maltratou porque ele se importa com ela e que não daria mais que uma semana para ele pedir desculpas e enchê-la de agrados, que por final foi o que realmente aconteceu. 
Ainda que eu seja contra esse tipo de atitude masculina, se refletirmos as condições, a cultura e os costumes daquela época e cidade, entendemos que aquilo não era nenhum erro fatal. Dessa forma, com a leitura dessa novela abrimos os olhos e começamos a enxergar muitas situações de outras perspectivas, pois nem sempre o que fomos ensinados a seguir é o único caminho.

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